Formação de Ouro Preto e do ouro-pretano

Antes de tudo, é bom que se esclareça, não haver nenhuma pretensão histórica, ou de fazer narrativas de acordo com a História conhecida. São apenas conjecturas do autor que, como qualquer outra pessoa, pode ver de forma um pouco diferente do que, presumidadmente, aconteceu.

De Minas Gerais se diz haver várias, se considerados os tipos de mineiro encontrados, dos limites com os paulistas à proximidade dos baianos, da vizinhança goiana e sul-mato-grossense até perto dos capixabas e fluminenses. Isso porque, à medida que se aproxima de um seu vizinho, como bom camarada que é, o mineiro se faz mimético, assume parte do jeito do outro, tornando-se metade mineiro e metade daquele com o qual convive mais de perto.

Ouro-pretano também há de vários tipos, por motivos diversos dos que fazem os diferentes mineiros, mas há, e, é preciso muito ruminar os pensamentos para se chegar a essa conclusão e, mais ainda, em havendo interesse por saber-lhes as causas. Para isso entender, de fato, necessário se faz um retrocesso ao início da colonização dessas paragens e uma imaginação sem limites, com poder de visualizar e de se adaptar ao cenário, ao ambiente, aos hábitos e costumes então vigentes.

O início de tudo

Aos pés do Itacolomi, em altos barrancos ou às margens de riachos, córregos e regatos, assentaram-se os bandeirantes de proa, aventureiros, garimpeiros e outros tipos ousados e rudes, tudo sob o jugo do mais forte, primeiro economicamente e, segundo, regido pela força bruta, pois lei ainda não havia. Na contenda entre os de pouco ou nenhum poder econômico, não se chegando ao acordo por palavras, falava o trabuco ou fazia gritar a lâmina afiada.

desenho de Rugendas

O ambiente social era o mais hostil possível, debaixo de uma insalubridade climática, na qual só os mais fortes sobreviviam, sabendo-se serem escassos ou nenhum os recursos médicos contra as gripes, pneumonia, tuberculose e toda sorte de moléstias favorecidas pela constante umidade, chuvas persistentes, pouco sol, além da pouca higiene.

Quem ali estava só pensava no ouro e a ganância anulava qualquer sinal de bom senso, razão pela qual, muitas vezes, nem se pensava poder haver outros contingentes humanos nas vizinhanças. Conta-se que, pelo menos, um dos daqueles primitivos arraiais veio a saber da existência de arraial vizinho, certa vez, ao ouvir fogos de artifício. Imagine-se o que pode ter sucedido naquelas mentes, ao tomarem conhecimento de concorrência estranha na vizinhança!

O tipo ensimesmado

Assim, no meio da luta pelo ouro, pela posse do ouro, pela posse de um teto, surgiu o espírito ensimesmado, que foi se cimentando ao longo do tempo,  com lutas (vide Guerra dos Emboabas, logo aos primeiros anos da mineração), conquistas  (primeira delas: criação de Vila Rica em 1711), seguida de mais luta (revolta de Vila Rica) em 1720, na qual se destacou o líder e mártir Filipi dos Santos. À mesma época Vila Rica é elevada ao status de capital da capitania. A convivência, mais de perto, com o colonizador e com uma elite intelectual formada em Lisboa e Coimbra deu os contornos de um perfil orgulhoso, ainda que sob a capa da humildade, assim como as primeiras pepitas encontradas.

desenho de Rugendas

Assim, a cidade foi berço de poetas e de artistas, bem como de políticos e de revolucionários, possibilitando aos seus habitantes o desenvolvimento de quase uma civilização própria, não obstante a presença de outras localidades na vizinhança. Estava formado o ouro-pretano da cidade, o “trezentão” ( em alusão ao trezentos anos de história), que sofreu a humilhação por ter sido Vila Rica o berço da Conjuração Mineira, enaltecido logo após a independência, ao receber a cidade o título de Cidade Imperial de Ouro Preto e mais uma vez humilhado, quando o governo do Estado, na República ainda a engatinhar, a abandonou e se foi, sem olhar para trás! Bem, aqui termina uma e tem início nova história de Ouro Preto.

Ouro Preto depois da derrubada da monarquia

Mediante ação de  um punhado de ativistas republicanos  com apoio de correspondente parcela militar, adesão de grandes fazendeiros ex-proprietários de escravos e pouca simpatia popular, proclamou-se a República, na manhã de 15 de novembro de 1889.

Conta-se que o marechal Deodoro da Fonseca estaria febril, sem mesmo condições de se erguer à cela do cavalo, sendo necessária a colaboração de seu ordenança. Desta forma fora envolvido, e, seu brado de apoio ao imperador foi abafado com o viva à República pelo restante da tropa reunida. Há cochichos de que ele teria sido alçado à condição de primeiro presidente, como compensação pela não reação ao ato golpista.

A família imperial foi embarcada num navio e levada para a Europa, dia seguinte. Isso é um resumo extraoficial do episódio que deu à luz a República, mal consolidada até hoje.

Algo grandioso para colorir e iluminar a República

Mal engendrado e sem respaldo popular, o novo regime necessitava, urgentemente, de algo grandioso, que impressionasse, de fato, a sociedade brasileira, ainda não muito certa do que seria a República. O prêmio, representado pelo grandioso coube a Minas Gerais, mas o preço a pagar coube a Ouro Preto.

Decidiu-se que Minas Gerais necessitava de nova capital, mais condizente com os tempos abertos pela República. Ouro Preto, cidade nascida de forma espontânea, ao sabor dos moradores, no decorrer do tempo, por ladeiras íngremes, becos estreitos e tortuosos, não podia continuar capital dos mineiros. Era o que diziam os defensores da mudança.

Era verdade. As condições urbanas eram precárias e contrastavam com o progresso ostentado por outras comunas mineiras, mas a perda do status de capital, mantido desde os primeiros anos de Vila Rica, seria muito grande. Apresentou-se projeto com alternativa de expansão da cidade, com traçado mais coerente com os novos tempos. Mas a sugestão não foi considerada; havia mesmo que se levantar nova cidade com destinação específica de capital. A região sugerida pelo conselheiro Randolpho Bretas é justamente a região da UFOP, da Bauxita e adjacências, onde Ouro preto mais se desenvolve na atualidade.

As condições urbanas de Ouro Preto eram mostradas como causa, talvez única e de fácil aceitação pela população como argumento pró mudança, mas por trás de tudo, razões políticas e desejos de apagar traços da monarquia pululavam nas cabeças republicanas à frente do governo.

Reduto monárquico

 Devido ao apreço votado pelos dois imperadores à cidade, Ouro Preto era um forte reduto monárquico.

 Ouro Preto ostentava o título de Cidade Imperial, concedido por Pedro I, um ano após a independência; teve implantada sua Escola de Farmácia, a mais antiga da Amárica Latina, em 1839; teve implantada a Escola de Engenharia de Minas, em 1876 e, em1888, inaugurou-se a estação da Estrada de Ferro D. Pedro II, pouco mais de um ano depois, rebatizada pelos republicanos como Estrada Férrea Central do Brasil -EFCB. Salvo engano, Ouro Preto foi a primeira capital de província a ser ligada à corte por ferrovia.

Por tudo isso havia uma forte ligação de Ouro Preto com a casa imperial, não se esquecendo que a coroa possuía também considerável propriedade rural, em Cachoeira do Campo, na qual se ergueu e se  manteve o maior quartel de cavalaria da capitania, no período colonial. Ao tempo de D.Pedro II, ali funcionava uma coudelaria. Aos próceres do novo regime não era interessante e muito menos conveniente a conservação dessas lembranças ligadas à monarquia. Com a mudança da capital matar-se-iam dois  coelhos com uma só paulada: o estado de Minas Gerais seria dotado de capital mais condizente e a monarquia seria apagada da memória do povo.

Entre os republicanos, pensou-se, discutiu-se e, em pouco tempo se pôs em execução a construção e a mudança da capital. Em 12 de dezembro de 1897, menos de dez anos depois da proclamação da República, a nova capital era inaugurada com o nome Cidade de Minas (Belo Horizonte foi mais tarde) e o governo se mudou para lá.

Crime de estado

Agora vem o que a História faz questão de omitir. A História registrou com ênfase a resistência da população local à ideia da mudança, citando até pejorativos criados  e perigos apontados na região da nova capital. Da verdade mesmo, das consequências assumidas pela população abandonada, nada se registrou, senão na memória do povo! A mudança da capital foi a maior tragédia para a população da cidade de Ouro Preto. Imagine-se, hoje, cerca de cinquenta por cento da população se deslocar, levando consigo todas as atividades econômicas exercidas.

Foi isso que aconteceu. Ouro Preto àquela época vivia, quase que exclusivamente, em função da máquina de governo que, de uma vez, se deslocou para fora. Conta-se que ruas inteiras ficaram vazias de moradores, as casas abandonadas com a chave na porta.

O governo não preparou a cidade para sobreviver após sua mudança. Simplesmente, juntou suas tralhas, lançou água ao borralho, levantou acampamento e partiu, sem olhar para trás, assim como fazia o tropeiro em suas viagens com a tropa. O que se fez, então, foi crime de estado! Uma população inteira foi abandonada ao “Deus dará”, sem eira e nem beira!

A cidade de Ouro Preto caiu, praticamente, na miséria. O município, como um todoe bem maior àquela época, não perdeu tanto, porque a economia ainda era localizada, cada localidade se mantinha, no exercício de suas atividades essenciais, mas a sede do município caiu do fausto ao infausto!

Causa oculta do crime

Conforme registrado, o povo se manifestou, resistiu à mudança e políticos locais apresentaram ideias de melhoramento da cidade como alternativa à troca de endereço da capital do estado. Mas, nada do que se imaginasse, em contrário à mudança, teria sido aceito, porque havia razões por demais  inconvenientes ao conhecimento do público, segundo o pensamento republicano mandante. Somente a precariedade da estrutura urbana era reconhecida como  incompatível com o status de uma capital de estado. O governo, no novo regime, pensava mas não dizia publicamente: a nova capital era necessária, não só para se tê-la com melhor estrutura, aspecto e organização dos serviços públicos, como também uma realização arrojada, que chamasse a atenção, consolidando assim a República junto ao povo, onde o monarca destronado gozava de prestígio e respeito, razões pelas quais seu retorno ainda era visto, no meio popular, como possível.  Quanto a Ouro Preto, os políticos republicanos vislumbravam, mas não diziam em público, um futuro sombrio, talvez uma cidade fantasma, em contraste ao brilho sustentado durante a monarquia. Entregue à própria sorte, esperavam os primeiros republicanos no governo de Minas Gerais que a cidade de Ouro Preto sucumbisse sobre si mesma. Como a maior parte de sua economia girava em torno da estrutura governamental, não haveria como se mantê-la de pé. Era só uma questão de tempo, para que tudo se consumasse, ficando então os republicanos vingados por ter sido Ouro Preto tão monarquista. Esse era o plano que, até certo ponto, deu certo porque, ao correr do tempo, o que era para apagá-la do mapa conspirou para sua preservação.    

“Trezentão”

Não é difícil deduzir que restou apenas cerca de cinquenta por cento da população local, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos e, o pior, essa era a parcela mais pobre. Mudaram-se todos os funcionários públicos do governo estadual e, junto, foram-se todos negócios e empresários, cujas atividades estavam mais ligadas ao governo; outros empresários e negociantes também se foram, antevendo o futuro sombrio do mercado em Ouro Preto. Até as escolas se esvaziaram! A prosperidade também havia se mudado com a capital

Forjado, no curso de uma história mais sofrida que vivida, muitas dores, sangue e lágrimas, o nativo da cidade desenvolveu personalidade própria; muito orgulho do seu passado, ensimesmado, como já dito, não muito afeito a reconhecer, lá fora, os valores para si sacrossantos dentro da sua urbe. Com esse espírito, que os novos governantes talvez, nem de longe, pressentissem, o ouro-pretano                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              mostrou-se resiliente na proporção inversa ao que de si imaginaram ao se mudar a capital!. Pouca  coisa lhe sobrou, para movimentar a economia, em Ouro Preto, de onde já havia saído tanto ouro e com tantos fins, entre os quais inclui-se até a recuperação de Lisboa, devastada pelo grande terremoto de 1755. Por serem federais, herança  direta do segundo império, criadas por D. Pedro II, ficaram a Escola de Farmácia e a Escola de Minas, instituições de ensino superior, já consagradas e de grande prestígio, que seriam, no futuro a célula mater da Universidade Federal Ouro Preto – UFOP. Foi nessas condições que a população da cidade de Ouro Preto sobreviveu ao terremoto político-administrativo, provocado pelo primeiro governo mineiro, na República, quando a abandonou para ir se instalar na nova capital.

Estava criado o “trezentão”, o citadino de Ouro Preto, que nunca fez muita questão de conhecer Ouro Preto extramuros, a totalidade de 1245 km2 da soma de 13 distritos, que formam o município, incluindo-se o distrito-sede, onde está localizada a cidade.

Porque e como Ouro Preto se preservou

Enaltece-se hoje, a figura de um político que primeiro se preocupou com a preservação de Ouro Preto, proibindo, por lei, que a cidade fosse desfigurada; isso em 1935 e, logo após, a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN trouxe o tombamento de Ouro Preto, o primeiro, como patrimônio nacional. Veja-se que esses fatos se dão nos anos 30. A essa altura, a população já havia comido o pão que o diabo amassou… com o rabo! Quase quarenta anos haviam se passado desde a mudança da capital. Outra geração  conduzia os destinos da cidade e, se condições favoráveis tivessem, a cidade já teria se descaracterizado. Continuou da mesma forma, porque não houve condições econômico-financeiras e nem motivos para que a transformassem. A robustez das construções sob a técnica portuguesa, à qual se somou a teimosia da população, continuando a habitá-las, permitiu  que o casario fosse mantido ao longo do tempo, mediante remendos aqui e ali. Não havia recursos para transformações e, muito menos, para inovações, mas, ainda que com sacrifícios, a manutenção da herança seguiu sendo feita. A cidade se preservou, dando asas à lei que a faria assim continuar, não porque o ouro-pretano quisesse, mas, sobretudo porque lhe faltaram os recursos necessários para transformá-la. Portanto, não foi a iniciativa do político local e nem o tombamento, efetuado pelo IPHAN, os responsáveis pela preservação de Ouro Preto. Tais ações político-administrativas obrigaram, sim, a que sucessores dos verdadeiros preservadores dessem continuidade à situação por estes últimos deixada. Impediram que, à medida que melhorassem as condições econômicas, fossem então feitas alterações, descaracterizando o estilo original. Paradoxalmente, a preservação de Ouro Preto somente se fez graças ao abandono e miséria, condição imposta pelo governo ao tirar da cidade o status de capital do estado.